Trechos sofreram modificações devido à erosão e a ações
do homem
Confira abaixo essa matéria, que foi publicada na edição deste domingo, 01/11, do Jornal O Globo:
RIO - Urubus espreitam a carniça. Sobre morros carecas e
em pedaços de terra estorricada, parecem velar o defunto à frente deles: o “rio
morto”, como moradores chamam antigos trechos do Rio Itabapoana, no Norte do
estado, com pouca água, sem correnteza ou completamente secos. O traçado do
rio, que ao longo de 180 quilômetros marca o limite entre o Rio de Janeiro e o
Espírito Santo, sofreu várias modificações nas últimas décadas devido à erosão
e ações do homem. A maior delas ocorreu nos anos 1970, quando obras de dragagem
criaram canais em linha reta entre as curvas do Itabapoana. O objetivo era
resolver problemas de enchentes na região.
Esse rio retificado é atualmente o principal curso
d’água. E os trechos em curva do traçado original, também conhecidos como
braços por quem vive na região, agora agonizam. É às margens de um deles que os
urubus se aglomeram, atraídos por carcaças de peixes e outros animais, perto do
vilarejo de Lagoa Feia, em São Francisco de Itabapoana. É uma cena fúnebre
diária, reflexo da degradação do rio que, agora, pode até mudar a divisa entre
os dois estados.
A proposta é que o limite continue baseado no Itabapoana.
No entanto, não seguiria mais o velho curso sinuoso do rio, com seus braços
mortos. Por um acordo aprovado em agosto pela Fundação Ceperj (Centro Estadual
de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio), pelo
Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (Idaf) e pelo
IBGE, a divisa passaria a acompanhar o atual traçado do rio, em linha reta.
Seguindo-o, partes do território fluminense passariam
para o Espírito Santo e vice-versa, com alterações que afetariam cerca de 20
trechos do município fluminense de São Francisco de Itabapoana e dos capixabas
Presidente Kennedy e Mimoso do Sul. Só uma das áreas tem 1,9 milhão de metros
quadrados (o equivalente a 469 campos de futebol), que seriam incorporados ao
Rio. Mas, no fim das contas, o Estado do Rio perderia: 0,27 quilômetro
quadrados, ou 0,06% de seu território. A mudança ainda depende de homologação
da Junta de Conciliação e Arbitragem da Advocacia Geral da União (AGU).
Na foz: há alguns anos, o rio mudou de curso e destruiu
parte de Barra de Itabapoana, no município de São Francisco de Itabapoana
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FAZENDAS DE GADO MUDARIAM DE LADO
Numa região basicamente rural, quase todos os trechos que
mudariam de estado são de fazendas de gado. Maurício Macedo Lima, por exemplo,
hoje vive em terras capixabas que virariam fluminenses. Ele chama de Chácara
Paraíso o lugar onde cria bois, além de porcos e galinhas, na ponta de uma ilha
entre um braço morto e um trecho retificado do rio, perto de Lagoa Feia. De sua
casa, vê os urubus. Mas o que mais chama a sua atenção é que, tanto de um lado
quanto do outro, o Itabapoana está cada dia mais seco e assoreado. Maurício
percebe logo qualquer alteração no rio. Afinal, todos os dias ele o atravessa
várias vezes numa canoa. Rotina que, segundo diz, não mudará no caso de uma
nova divisa.
— Já vivo entre o Rio e o Espírito Santo. Às vezes, cruzo
a divisa mais de 20 vezes num dia. Voto, compro água e comida no Rio de
Janeiro. A energia elétrica da minha casa, a rádio que ouço e o DDD do meu
telefone são do Espírito Santo. Na minha vida, não mudará nada. A propriedade é
que vai ter um novo endereço — diz ele. — Mas o rio precisa de salvação. Eu
mesmo pesquei nele por muito tempo. Mas acabou o peixe. Tive que procurar outra
atividade.
Na Lagoa Feia, uma comunidade inteira que tinha a pesca
como uma das bases de sua economia foi afetada. Hoje, as duas pequenas empresas
de beneficiamento de pescado que sobraram trazem a maior parte do peixe de
Linhares, no Espírito Santo. O lugar, que já era pobre, ficou ainda mais
carente.
— Para nós, o rio acabou. Antigamente, para cruzá-lo, um
cavalo passava nadando. Hoje, um cachorro atravessa andando. No curso velho, a
água não corre mais. No novo, não tem nem 20 centímetros de água — diz o
morador Israelita Macedo.
Urubus se aglomeram às margens do "rio morto", no
vilarejo de Lagoa Feia. Na região, é possível atravessar o rio a cavalo ou a
pé, com água abaixo do joelho
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Para explicar essas mudanças, o diretor do Centro de
Estatísticas, Estudos e Pesquisas do Ceperj, Raulino Oliveira, é enfático: elas
estão diretamente relacionadas à degradação ambiental da região como um todo,
como o desmatamento no Sul capixaba e no Norte/Noroeste fluminense, assim como
a mineração predatória no Espírito Santo. Segundo ele, a possibilidade de
modificação da divisa também está atrelada a esse quadro:
— São décadas de atividades nocivas na região, como o
plantio de forma incompetente da cana de açúcar, causando prejuízos ao solo.
Isso contribui para deixar o Itabapoana completamente assoreado. Foi essa morte
que começou a modificar o limite dos dois estados. Olhando cartas
aerofotométricas, percebemos diferenças entre a divisa atual e o caminho do
rio. Por isso, resolvemos estudar as mudanças na divisa.
Ponte sobre o Rio Itabapoana na BR-101: o rio está mais
raso do que o normal
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Em alguns braços do rio, nem água existe mais. É o que
acontece numa localidade conhecida como Porto de Santana, bem no limite entre
São Francisco e as cidades de Presidente Kennedy e Mimoso do Sul. Uma das
curvas que o rio fazia para o norte virou mato. Em outra, onde o Itabapoana se
encontrava com um de seus afluentes, só restou um filete d’água. São duas áreas
fluminenses que passariam para o Espírito Santo.
O quadro tem consequências nefastas para uma região
basicamente agrícola.
— Todas as fazendas aqui usam água do Itabapoana. O rio,
que eu nunca vi tão baixo como atualmente, é o segredo para elas existirem —
afirma José da Silva Paz, que há 30 anos mora na beira do Itabapoana. — Outro
dia, tentei subir o rio para pescar. Não teve como, porque precisei arrastar o
barco por areia e pedras.
SECA PIORA A SITUAÇÃO
O cenário é agravado pela estiagem atual. Presidente do
Comitê da Bacia Hidrográfica do Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana, João Gomes
de Siqueira ressalta que, na região, a seca já se arrasta desde maio do ano
passado. Setores da economia, como a agropecuária e a produção de energia
elétrica, já foram afetados. E nesse período, diz o professor da Universidade
Estadual do Norte Fluminense (Uenf), a agricultura local, sobretudo em São
Francisco de Itabapoana, já acumulou perdas de 70% a 80%. Com a vazão baixa do
rio, afirma, há problemas do interior à foz:
— O município de Bom Jesus do Itabapoana já enfrentou
dificuldades no abastecimento de água. Enquanto em Barra de Itabapoana (no
município de São Francisco de Itabapoana), o mar está avançando, fazendo com
que a água salgada suba o rio.
Nessa última localidade, é comum ver os barcos de pesca parados
no mar, esperando o momento de conseguir entrar pela boca do rio, obstruída na
maré baixa por bancos de areia.
— A foz sempre mudou de lugar. Mas agora o rio está seco
como nunca vi — afirma Dilmo Rosa, morador de Barra de Itabapoana.
Desmatamento: na região, morros carecas, quase sem
vegetação, denunciam as décadas de degradação ambiental
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Para tentar diminuir as consequências da degradação,
Siqueira diz que está em discussão a elaboração de um plano de bacia para a
região, que teria, entre as medidas, o acompanhamento dos desvios feitos no rio
para uso na agricultura. Segundo ele, a retificação dos anos 1970 pode ser uma
das vilãs, já que, sem as curvas, o Itabapoana corre mais rápido, diminuindo
sua capacidade de reservação (ou seja, de manter o nível da água).
Raulino, do Ceperj, afirma por sua vez que foi
apresentado ao Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo (Bandes) um projeto
de recuperação da região.
— Precisamos encontrar alternativas para a agropecuária.
Mas não temos a ilusão de replantio de Mata Atlântica nessa área. A sensação,
em toda essa divisa, é de desertificação — diz ele.
Matéria: Rafael Galdo / Jornal O Globo
Fotos: Custódio Coimbra/Agência O Globo
Acesse aqui a matéria no site do Jornal O Globo. Lá o internauta encontra um vídeo com os bastidores desta reportagem especial.
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