domingo, 1 de novembro de 2015

Alterações em traçado do Rio Itabapoana podem mudar divisa com o Espírito Santo


Trechos sofreram modificações devido à erosão e a ações do homem

Confira abaixo essa matéria, que foi publicada na edição deste domingo, 01/11, do Jornal O Globo:

Encontro entre um braço “morto” e o curso principal do Itabapoana: em ambos os lados, o rio está assoreado e raso. Seca piora a situação e não é raro encontrar animais mortos nas margens ou mesmo dentro d’água

RIO - Urubus espreitam a carniça. Sobre morros carecas e em pedaços de terra estorricada, parecem velar o defunto à frente deles: o “rio morto”, como moradores chamam antigos trechos do Rio Itabapoana, no Norte do estado, com pouca água, sem correnteza ou completamente secos. O traçado do rio, que ao longo de 180 quilômetros marca o limite entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, sofreu várias modificações nas últimas décadas devido à erosão e ações do homem. A maior delas ocorreu nos anos 1970, quando obras de dragagem criaram canais em linha reta entre as curvas do Itabapoana. O objetivo era resolver problemas de enchentes na região.

Esse rio retificado é atualmente o principal curso d’água. E os trechos em curva do traçado original, também conhecidos como braços por quem vive na região, agora agonizam. É às margens de um deles que os urubus se aglomeram, atraídos por carcaças de peixes e outros animais, perto do vilarejo de Lagoa Feia, em São Francisco de Itabapoana. É uma cena fúnebre diária, reflexo da degradação do rio que, agora, pode até mudar a divisa entre os dois estados.

A proposta é que o limite continue baseado no Itabapoana. No entanto, não seguiria mais o velho curso sinuoso do rio, com seus braços mortos. Por um acordo aprovado em agosto pela Fundação Ceperj (Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio), pelo Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (Idaf) e pelo IBGE, a divisa passaria a acompanhar o atual traçado do rio, em linha reta.

Seguindo-o, partes do território fluminense passariam para o Espírito Santo e vice-versa, com alterações que afetariam cerca de 20 trechos do município fluminense de São Francisco de Itabapoana e dos capixabas Presidente Kennedy e Mimoso do Sul. Só uma das áreas tem 1,9 milhão de metros quadrados (o equivalente a 469 campos de futebol), que seriam incorporados ao Rio. Mas, no fim das contas, o Estado do Rio perderia: 0,27 quilômetro quadrados, ou 0,06% de seu território. A mudança ainda depende de homologação da Junta de Conciliação e Arbitragem da Advocacia Geral da União (AGU).

Na foz: há alguns anos, o rio mudou de curso e destruiu parte de Barra de Itabapoana, no município de São Francisco de Itabapoana

FAZENDAS DE GADO MUDARIAM DE LADO

Numa região basicamente rural, quase todos os trechos que mudariam de estado são de fazendas de gado. Maurício Macedo Lima, por exemplo, hoje vive em terras capixabas que virariam fluminenses. Ele chama de Chácara Paraíso o lugar onde cria bois, além de porcos e galinhas, na ponta de uma ilha entre um braço morto e um trecho retificado do rio, perto de Lagoa Feia. De sua casa, vê os urubus. Mas o que mais chama a sua atenção é que, tanto de um lado quanto do outro, o Itabapoana está cada dia mais seco e assoreado. Maurício percebe logo qualquer alteração no rio. Afinal, todos os dias ele o atravessa várias vezes numa canoa. Rotina que, segundo diz, não mudará no caso de uma nova divisa.

— Já vivo entre o Rio e o Espírito Santo. Às vezes, cruzo a divisa mais de 20 vezes num dia. Voto, compro água e comida no Rio de Janeiro. A energia elétrica da minha casa, a rádio que ouço e o DDD do meu telefone são do Espírito Santo. Na minha vida, não mudará nada. A propriedade é que vai ter um novo endereço — diz ele. — Mas o rio precisa de salvação. Eu mesmo pesquei nele por muito tempo. Mas acabou o peixe. Tive que procurar outra atividade.

Na Lagoa Feia, uma comunidade inteira que tinha a pesca como uma das bases de sua economia foi afetada. Hoje, as duas pequenas empresas de beneficiamento de pescado que sobraram trazem a maior parte do peixe de Linhares, no Espírito Santo. O lugar, que já era pobre, ficou ainda mais carente.

— Para nós, o rio acabou. Antigamente, para cruzá-lo, um cavalo passava nadando. Hoje, um cachorro atravessa andando. No curso velho, a água não corre mais. No novo, não tem nem 20 centímetros de água — diz o morador Israelita Macedo.

Urubus se aglomeram às margens do "rio morto", no vilarejo de Lagoa Feia. Na região, é possível atravessar o rio a cavalo ou a pé, com água abaixo do joelho
Para explicar essas mudanças, o diretor do Centro de Estatísticas, Estudos e Pesquisas do Ceperj, Raulino Oliveira, é enfático: elas estão diretamente relacionadas à degradação ambiental da região como um todo, como o desmatamento no Sul capixaba e no Norte/Noroeste fluminense, assim como a mineração predatória no Espírito Santo. Segundo ele, a possibilidade de modificação da divisa também está atrelada a esse quadro:

— São décadas de atividades nocivas na região, como o plantio de forma incompetente da cana de açúcar, causando prejuízos ao solo. Isso contribui para deixar o Itabapoana completamente assoreado. Foi essa morte que começou a modificar o limite dos dois estados. Olhando cartas aerofotométricas, percebemos diferenças entre a divisa atual e o caminho do rio. Por isso, resolvemos estudar as mudanças na divisa.

Ponte sobre o Rio Itabapoana na BR-101: o rio está mais raso do que o normal

Em alguns braços do rio, nem água existe mais. É o que acontece numa localidade conhecida como Porto de Santana, bem no limite entre São Francisco e as cidades de Presidente Kennedy e Mimoso do Sul. Uma das curvas que o rio fazia para o norte virou mato. Em outra, onde o Itabapoana se encontrava com um de seus afluentes, só restou um filete d’água. São duas áreas fluminenses que passariam para o Espírito Santo.

O quadro tem consequências nefastas para uma região basicamente agrícola.

— Todas as fazendas aqui usam água do Itabapoana. O rio, que eu nunca vi tão baixo como atualmente, é o segredo para elas existirem — afirma José da Silva Paz, que há 30 anos mora na beira do Itabapoana. — Outro dia, tentei subir o rio para pescar. Não teve como, porque precisei arrastar o barco por areia e pedras.

Mauricio Macedo Lima vive hoje em território capixaba. Mas com proposta de mudança da divisa entre o Rio e Espírito Santo, devido às mudanças da divisa no Rio Itabapoana, sua casa passará a fazer parte do Rio de Janeiro.

SECA PIORA A SITUAÇÃO

O cenário é agravado pela estiagem atual. Presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana, João Gomes de Siqueira ressalta que, na região, a seca já se arrasta desde maio do ano passado. Setores da economia, como a agropecuária e a produção de energia elétrica, já foram afetados. E nesse período, diz o professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), a agricultura local, sobretudo em São Francisco de Itabapoana, já acumulou perdas de 70% a 80%. Com a vazão baixa do rio, afirma, há problemas do interior à foz:

— O município de Bom Jesus do Itabapoana já enfrentou dificuldades no abastecimento de água. Enquanto em Barra de Itabapoana (no município de São Francisco de Itabapoana), o mar está avançando, fazendo com que a água salgada suba o rio.

Nessa última localidade, é comum ver os barcos de pesca parados no mar, esperando o momento de conseguir entrar pela boca do rio, obstruída na maré baixa por bancos de areia.

— A foz sempre mudou de lugar. Mas agora o rio está seco como nunca vi — afirma Dilmo Rosa, morador de Barra de Itabapoana.

Desmatamento: na região, morros carecas, quase sem vegetação, denunciam as décadas de degradação ambiental 

Para tentar diminuir as consequências da degradação, Siqueira diz que está em discussão a elaboração de um plano de bacia para a região, que teria, entre as medidas, o acompanhamento dos desvios feitos no rio para uso na agricultura. Segundo ele, a retificação dos anos 1970 pode ser uma das vilãs, já que, sem as curvas, o Itabapoana corre mais rápido, diminuindo sua capacidade de reservação (ou seja, de manter o nível da água).

Raulino, do Ceperj, afirma por sua vez que foi apresentado ao Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo (Bandes) um projeto de recuperação da região.


— Precisamos encontrar alternativas para a agropecuária. Mas não temos a ilusão de replantio de Mata Atlântica nessa área. A sensação, em toda essa divisa, é de desertificação — diz ele.

Matéria: Rafael Galdo / Jornal O Globo
Fotos: Custódio Coimbra/Agência O Globo
Acesse aqui a matéria no site do Jornal O Globo. Lá o internauta encontra um vídeo com os bastidores desta reportagem especial.

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